lundi 15 mai 2006



O Elemento infinito no nó borromeano



Pode parecer paradoxal falar de infinito atual em psicanálise enquanto os instrumentos topológicos trabalhados por Lacan dão conta dos constrangimentos formais e dos limites da estrutura.
A reta infinita tomada de empréstimo em Desargues, capital na perspectiva do fantasma, talvez não seja o melhor suporte para uma clínica singular que se verifica tanto em Schreber quanto em Cotard ou no transsexualismo e associando o incessante ao contínuo e ao envelope.
O infinito propriamente dito, no sentido que lhe é dado por Cantor, a imortalidade e a enormidade do delírio das negações o convocam, em uma topologia da "asfera", ou da esfera indicando, qualquer que seja a opção, que é a propriedade do buraco que é aqui colocada em dificuldade; o real do corpo despecificando o orificial, solicita um corte iminente e infinitamente distanciado.
Se a reta infinita de Desargues retorna a partir de RSI no nó borromeano, é mais como uma parte aderente ao traço unário.
A abertura dos círculos do nó vem mostrar a efetiva ligação entre o simbólico e o real; se não é o traço ou o falo que "verifica o buraco", então o objeto vem superpor, colar as três consistências com esta aparente surpresa que Desargues antecipa com seus trabalhos sobre os cônicos: voz, olhar ou pele, o objeto se torna, de certo modo, o mesmo, o envelope de todo objeto.
A atualidade do infinito na clínica estaria então mais do lado da transformação de um objeto que se tornou o substituto de uma extremidade. Assim, a dessimbolização, tão freqüentemente evocada, não aparece mais tanto como perda do símbolo, mas sim como um privilégio que está de acordo com as metamorfoses do objeto tais como as adições o realizam.
Se tal é o caso, é ainda justamente o corte que deveria guiar o clínico em sua prática, mais do que as posições sintomáticas que ele endossa regularmente. Mas qual corte?
As referências a Desargues e a Cantor são numerosas nos seminários de Lacan e o interesse pela noção de infinito não é apenas homenagem prestada aqueles que mexeram com nossa concepção do espaço e do número.
No momento em que isso que chamamos de matemática moderna parece denegar a importância dos processos que implicam o infinito, a clínica psicanalítica pode nomear configurações onde o termo de infinito atual propriamente dito encontra uma certa validação.
Em todo caso, esta é a questão que nos interessa colocar aqui à prova.
De Desargues ao estofo do fantasma
No seminário "O Objeto da psicanálise", Lacan comenta longamente o quadro "As meninas" de Velasquez, e o apoio que ele encontra na perspectiva e na geometria projetiva lhe permite pensar o olhar como sendo o resultado de uma construção e não como uma simples fisiologia, quer dizer, como fundamentalmente distinto da visão.
O trabalho da perspectiva joga com a colocação em relação de um comprimento infinito com um comprimento finito.
Desargues (1591-1661) tem em vista a posição de um ponto ao infinito no espaço geométrico, abrindo assim a concepção clássica da esfera antiga, grega, encerrando o cosmos.
Primeiro corte de importância, uma vez que permite o despregamento de representaçoes imaginarias de um inconsciente dominado pelas categorias do dentro e do fora.
O ponto infinito não é materializado, ele não pode ser visualmente apreendido, mas é definido como uma interseção de retas, assimilando retas concorrentes ou secantes e retas paralelas.
Trata-se, bem entendido, não de uma percepção mas de uma construção : o ponto de interseção pode estar a uma distância finita ou a uma distância infinita ( conforme artigo de Jean-Jacques Szczeciniarz, no volume Infini des mathématiques, Infini des philosophes, Belin Editor). Desargues estenderá sua hipótese e passará do ponto no infinito à reta no infinito.
Além da classificaçao dos cônicos (rascunho do projeto de 1639) que, naquela ocasião, somente interessa ao jovem Pascal, aquele que Leibniz descreve como um gênio isolado, ao mesmo tempo precursor e arcaico, mostrará que "é possivel tratar a reta como um círculo" (o que era absolutamente impensável na metafísica de Aristóteles onde a curva é distinta da reta ). É isso o que lembra Lacan em RSI e no Sinthoma : "se eu falei de retas infinitas, é porque a reta infinita é um equivalente do circulo, é um equivalente do qual um ponto está ao infinito" Com a condição, acrescenta Lacan, de que elas sejam concêntricas... que entre elas, elas não façam cadeias...
"As meninas" captam, ou melhor, envolvem o espectador, pois a superfície aqui construída é um espaço onde planos infinitos se juntam acima e atrás de nós.
Estamos na projeção - em um espaço euclidiano de duas dimensões, de um objeto que não pertence a este espaço. Como vocês sabem, esta superfície se chama plano projetivo ou ainda cross-cap ; Lacan a chama de "asfera", no Etourdit.
Lacan serve-se deste objeto topológico para explorar os efeitos de um corte simples, em seguida de um corte duplo no seminario A lógica do fantasma. Lembremos que a construção do cross-cap, a partir de um buraco sobre a esfera (continuamos seguindo o itinerário de Desargues), torna necessário o recortamento das superfícies ou ponto de "auto-atravessamento". É no lugar da linha de interpenetraçao das paredes anteriores e posteriores do cross-cap que Lacan introduz um primeiro corte reduzindo a superfície em um disco com um direito e um avesso, o que ele chama de "o objeto". Acreditamos que seja útil indicar aqui o peso enigmático do célebre "fantasma" de Schreber : " um dia, enquanto eu estava ainda na cama (eu não sei mais se eu ainda estava meio adormecido ou se eu já estava acordado), tive uma sensação tal que, quando me senti completamente desperto e que pensei novamente nela, me perturbou da maneira mais estranha. Era a idéia que, de qualquer modo, deve ser algo singularmente belo, ser uma mulher sofrendo o acasalamento".
É no capitulo IV das suas memórias que Schreber evoca este enunciado, que poderia ser escutado como uma escritura do fantasma, se não se abrisse neste ponto, jogado ao infinito, todo o processo de metamorfose que conhecemos e que ele mesmo chama de "o milagre de eviração".
O devaneio de Schreber não é o efeito de um simples corte indentificando-o como objeto para um outro. Instala-se toda uma série de transformações contínuas referentes ao registro da voz pela alucinação e pela dissociação dos elementos componentes da linguagem, o registro da imagem e do olhar no processo de feminização, mas também ( cuja importância eu tentei pontuar no pequeno artigo publicado pelo Boletim da Association Freudienne), designando a pele como suporte desta unificação da superfície em um gozo ininterrupto que Schreber descreve com muita precisão como estruturalmente distinto do gozo fálico. Temos aí o Real clínico daquilo que Lacan, no esquema R, apresenta como infinidade móvel de linhas hiperbólicas. Indício do que o corte produz no lugar onde fracassa.
O instrumento topológico tem para Lacan, parece-me, este gancho referencial com o próprio estofo da clínica, do Real clínico.
É preciso dar toda sua importância, em Schreber, às expressões indicando a marcha de uma globalização, de um envelopamento de toda a extensão do corpo em um processo onde o cotínuo - o conceito de contínuo - chega a dominar a textura.
Cantor e o contínuo na clinica
Mantemos presente a idéia de interrogar o laço habitual que o corpo mantém com o simbólico, o que o fura, este corpo como real, quer dizer, agencia uma certa funcionalidade, uma certa vectorisação ou orientação a seus orificios. Em seus "Fundamentos de uma teoria geral dos conjuntos" ; publicado em 1883, Cantor ultrapassa uma etapa completamente singular em distinguindo " infinito impropriamente dito" e "infinito propriamente dito" ou "infinito perfeitamente determinado", e , ao mesmo tempo, nomeando números chamados de "transfinitos".
Não me deterei na demonstração de Cantor, lembrarei simplesmente aqui alguns pontos interessantes :
1. Primeiramente a questão do número, o pensamento do infinito não é, para Cantor, unicamente abordável pela reta sem limite ou pelas séries infinitas convergentes ; ele quer fixar esta noção por números.
2. Cantor ataca diretamente a rejeição que faz Aristóteles da atualidade do infinito, do infinito em ato.
3. Cantor nomeia outros que, antes dele (- de quantos pontos se compõe uma linha?), se interessam enormemente pela noção de contínuo, pela estrutura do contínuo, e é nesse esforço que ele descobre números com propriedades novas.
4. Os princípios de construção desses novos números ou princípios de engendramento são correlatos a um princípio de parada ou de limitação. É este constrangimento na teoria, este limite que permite propor os números infinitos na ordem certa, pois o infinito tem sua ordem.
... "revela-se um novo princípio, que toma lugar ao lado dos dois outros e que eu chamo de princípio de parada ou de limitação: ele tem como efeito...que a segunda classe de números....não adquire apenas uma potência superior àquela da classe 1, mas precisamente a potência imediatamente superior..."
A atualidade do infinito em clínica, o engendramento de novos espaços, de novas configurações, mas em uma certa ordem, fazem-me associar do lado da síndrome de Cottard ou delírio das negações, que havíamos largamente retomado em 1992.
Neste quadro particular, a questão do infinito encontra sua atualidade no delírio de imortalidade e no delírio de enormidade.
As idéias de imortalidade e de enormidade vêm apenas como último resultado do remanejamento delirante, ou antes da falta deste, no momento em que o imaginário não consegue mais assegurar nem distância, (sobre o eixo a -a'), nem endereço. A imortalidade indica que, porque ele não tem corpo, não tem outros, nem nomes: o sujeito com síndrome de Cottard está também fora do tempo.
A infinitude do tempo dá, classicamente, seqüência à infinitude no espaço.
Aquele que denega, pelo desenvolvimento de seu corpo, atinge o universo inteiro; de nada, ele se torna o envelope do próprio mundo. Como lembra Jorge Cacho: "Outras vezes, trata-se destas matérias mesmas, que no lugar micromaníaco o doente retinha, não podendo mais expulsá-las...os objetos que então se tornaram enormes são, como na forma hipocondríaca do delírio das negações, objetos corporais...eles são projetados
sobre o mundo exterior com o qual eles se fundem...". Novamente, o problema de um corte que não é um corte mas sim uma expulsão, uma ejecção sem limite.
A topologia da asfera, que Marcel Czermak propõe para dar conta da síndrome de Cotard, mostra o objeto não podendo se desprender por corte.
Marc Darmon propõe uma topologia da esfera sobre a qual a superfície inteira tende a se colabar, ou a englobar, a superfície toda, completamente.
Os enunciados paradoxais do sujeito com síndrome de Cotard reclamam a morte ao mesmo tempo em que se declaram imortais, e a relação complexa entre o Cotard e a paranóia, já assinalada por Séglas, fazem com que hesitemos em abandonar a imaginária linha de autotravessia e o recorte das superfícies, mas, tanto numa opção como na outra (asfera ou esfera), não é mais a linha reta que indica para nós o melhor suporte de uma clínica onde o infinito toma seu lugar.
Lacan, em O Sinthoma, faz esta observação: "Não é porque o finito tem limites que uma reta infinita, isto é em suma, fazendo círculo, baste para metaforizar o infinito".
Lacan insistirá em O momento de concluir, sobre a necessidade de se liberar do fantasma da linha reta e de acordar sua importância à tecitura, aos tecidos tóricos dos quais ele se serve para experimentar os esburacamentos e os retornos. Cantor com os números dá um certo tecido à noção de infinito. No último capítulo do seminário RSI, Lacan fala de Desargues e de Riemann, lamentando que o ponto ao infinito não seja tratado de maneira satisfatória. Charles Melman, em seu seminário sobre a neurose obsessiva dá uma tradução precisa e muito original do laço privilegiado do sujeito com o infinito enquanto justamente trabalhado pelo número. Ele evoca, na lição 10, a insistência na observação do Homem dos ratos do 1 e do 1/2, e a maneira como o obsessivo se esforça para "elevar o 1/2 à dignidade do 1".
Charles Melman arrisca-se, em seguida, a propor uma escritura borromeana na qual o círculo do simbólico unido ao do imaginário, este círculo do simbólico é aberto e forma uma reta ao infinito. É um nó com apenas duas consistências, com dois círculos, no qual o real só seria apreensível pelas malhas deste simbólico, no infinito - "não se suportaria senão de valer como infinito no registro do simbólico". Na última lição de seu seminário, Charles Melman indica que o inconsciente pode ser estruturado pelos números reais e que com o 1 e o 1/2, nós temos o início de uma seqüência convergente ao infinito ( 1+ 1/2 + 1/4 +1/8... jamais chegando a 2).
Existe sempre lugar, neste tipo de subjetividade, para uma infinidade de números entre dois números naturais. Estamos próximos das elaborações de Cantor. Creio que o que os matemáticos chamam de "análise não-standard" introduz uma concepção de um número compreendido como um halo de números, sorte de conglomerado que, de halo em halo, tem as características do contínuo. Aqui, mais uma vez, encontramos a inspiração cantoriana.
O traço unário e a reta infinita no nó borromeano
Em RSI, Lacan procede a abertura do círculo em uma reta infinita para poder representar a ex-sistência.
Ele indica também que com duas retas infinitas nós podemos manter a propriedade do nó borromeano, com a condição de que o ponto infinito seja tal, que as duas retas não façam cadeia. Um ano mais tarde, em O Sinthoma, ele explica que por causa do nó borromeano, ele deu um outro suporte ao traço unário, a reta infinita que ele caracteriza por sua equivalência ao círculo. A reta infinita apresenta então interesse em participar da construção de superfícies, onde é o buraco e não mais a extensão que comanda o espaço.
Por outro lado, a possível abertura de um círculo ao infinito é a propriedade daquilo que dá sua garantia simbólica à identidade, o traço unário.
O Real do nó, não é um dos círculos, é a maneira de apresentá-los na forma de conjunto. A partir do momento em que o nó é borromeano, é o traço, também enquanto encarnação do significante fálico, que vem verificar, como diz Lacan no Sinthoma, que os esburacamentos e os cortes do nó são verdadeiros.
O infinito aqui, se ele faz círculo, não é apenas uma eterna revolução. No seminário, Lacan insiste sobretudo quanto às propriedades do "falso buraco" (buraco situado entre dois círculos dobrados em meia orelha), permitindo, como em Joyce, uma práxis do sinthoma.
Nós proporemos uma outra pista para trabalhar com a defecção deste traço unário, suporte princeps da identificação.
O traço unário pode se equivaler à reta infinita porque ele serve de vértebra para a superfície, porque ele dá desta última os esburacamentos e as orientações.
É por este viés que a consistência do nó resta igualmente submetida ao Nome do Pai mas não como quarto círculo.
Existe uma grande ligação entre a possibilidade do um (aquele da contagem e não aquele da totalidade) e digamos, a variedade de buracos que o nó borromeano propõe.
Desargues antecipa sobre os efeitos da foraclusão do Nome do Pai, quando mostra, em seus trabalhos sobre os cônicos, como ver objetos distintos como variação do mesmo fenômeno. A ponta mono-orificial da psicose é o indício desta despecificação da pulsão como do objeto. Mas o declínio do Nome do Pai, do qual freqüentemente falamos, parece rivalizar com outras maneiras de contornar a efetividade do enlaçamento.
A promoção de um objeto, infinitamente substituível, como nas toxicomanias permite justapor, colar as três consistências do nó cuja propriedade borromeana não então mais do que um trompe l´oeil.
Se a pele e uma oralidade despecificada, são igualmente convocadas nas toxicomanias, é porque ali se inventam buracos inusitados.
A atualidade do infinito seria então totalmente detectável do lado da transformação contínua de um objeto que se tornou substituto de traço, e de certo modo sub-produto da degradação do pai.
O declínio do Nome do Pai toca no modo de rechaçar os limites do gozo, privilegiando o engendramento das metamorfoses do objeto, que se pode dizer parcial, mas que tornou-se irreconhecível pois sua borda pulsional está despregada de sua representação freudiana: o corte cirúrgico operado no transsexualismo instala uma montagem sem precedente. Não é absolutamente mais o laço que o corpo mantém com o simbólico o que permite que este corpo seja esburacado como real, é o corpo que força o simbólico à se dobrar a um imaginário todo-poderoso.
Se tudo isso tem algum sentido, é então justamente as questões de cortes e de esburacamentos que se encontram interrogadas por aquele que pratica a clínica, mais do que as posições sintomáticas que ele endossa regularmente.
Em O momento de concluir, Lacan se interessava pelos diferentes tipos de cortes, aqueles que dissolviam o nó, aqueles que não liberavam o toro a três envolapado por um quarto toro revirado.
Hipnotizados pelo quadro, nós não percebemos que o objeto que tentamos detalhar se transformou, como para o Cotard, no próprio envelope. É o tecido das coisas que se torna para nós infinitamente distante.
Ver também artigo do mesmo autor, publicado no Boletim da Association freudienne internationale, Paris, França, setembro-1998.
Seminário RSI, lição de 09/03/76
Referência a Virago. Cf. os trabalhos sobre a desespecificação da pulsão, apresentados em Grenoble, ver revista Le Trimestre psychanalytique, no.2/4. 1997.
Jorge Cacho, Le délire des négations. Edições da Association Freudienne Internationale, 1993.
Tradução : Maria Rosane Pereira-Pinto

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