Tyszler e Ilaria Pirone
na falta de um lugar entre o exílio e a errância, o sujeito. A clínica: uma das formas da hospitalidade.
Conferência: a clínica do exílio, 15.01.2018.
JJ Tyszler: Boa noite. Eu vou lhes dizer algumas palavrinhas de introdução. Em seguida eu deixarei a palavra à palestrante, Ilaria Pirone, que me auxilia na Unidade do CMPP, a gentileza de prosseguir com o tema que tinha sido iniciado da última vez, continuando as questões eminentemente clínicas.
Temos desenvolvido há alguns anos uma aliança de trabalho com France Terre d´Asile que recebe, por delegação do Estado, famílias em exílio e requerentes de asilo. Há vários CADA (Centro de Acolhimento para Demandantes de Asilo) na Ile-de-France da qual nossa unidade, que tem um convenio de trabalho com France Terre d´Asile na questão das crianças.
Ilaria trabalha – com outros, é claro – já há alguns anos, sobre esse tema dessa migração nova que é não forçosamente redutível às migrações antigas. É uma questão que será preciso que vocês se coloquem. Estamos preparando para o final de março na Unidade, com pessoas do CADA justamente, por demanda delas, uma jornada de formação na MGEN em meu serviço. As Unidades como as nossas se dedicam, mas não unicamente, à causa das crianças pequenas do exílio.
E depois, mais recentemente, tomamos contato com o que se chama o CHUM (Centro de alojamento, hébergement, de Urgência dos Migrantes). Vocês sabem que em Paris há dois lugares onde estão reagrupados o que se chama os “migrantes” que não têm o estatuto de requerentes de asilo, por enquanto. Há a Porte de la Chapelle que vocês conhecem, a qual se leva muito em consideração na imprensa porque é duro; há um lugar que é menos conhecido mas que é muito importante, que é em Ivry, onde estão reagrupados os casais, as famílias e as crianças.
Fui, exatamente depois do Natal, visitar esse lugar que é bem organizado e tomei contato com a coordenadora de saúde, que faz parte do Samu Social, para ver se seria legítimo que uma Unidade de crianças como a nossa pudesse entrar no laço da ajuda.
Trata-se de levar a sério esse desafio, essa clínica de hoje, essa nova economia psíquica, mas por essa vertente de segregação e de exclusão.
Ilaria me deu a ideia de um atelier que é particular, que nós estabelecemos, e que se chama o atelier Mythos. Ou ainda, para ser mais sofisticado “do mito ao logos”. Nesse atelier Mythos encontram-se reunidas crianças, sem restrição de origem, quaisquer que sejam a cor de pele, as raízes, a religião, sem restrição de patologia também: não se toma apenas os traumatizados, e não tem restrição de idade. As crianças acham-se reunidas por grupos, em torna da leitura e do comentário que elas fazem, de um certo número de grandes mitos gregos. Nós não especificamos demais as origens, nem as patologias.
Temos uma leitura psicanalítica dessas questões, em torno da organização pelas crianças, nos relatos e se posso dizer pelo jogo de palavras, de RSI (Real, Simbólico, Imaginário) precisamente.
Vocês verão eventualmente, outros colegas lhes narrarão esforços diferentes sobre a questão das culturas, é claro, o que se chama hoje o transcultural, a etnopsiquiatria, ou ainda as superespecializações sobre a questão do traumatismo. Há muitas unidades, muito muito especializadas. Nós não! Nós fizemos a escolha de permanecer universalistas em nossa maneira de pensar a recepção das crianças. Isso não subtende que fora dos ateliers elas não estejam sendo acompanhadas evidentemente em psicoterapia individual por uns ou outros.
Pedi as colegas que estão verdadeiramente envolvidos com essas questões, porque não se pode inventar a clínica do exílio. Além disso, é preciso estar trabalhando em lugares onde recebemos essas crianças. Senão, pode-se sempre falar à toa do que se quiser. Mas nós não somos tão numerosos a receber famílias dessa ordem. Portanto, eu pedi aos meus colegas para lhes trazer alguns exemplos.
Haveria lugar para se indagar por que trazer crianças que vêm de territórios e de línguas tão diferentes, tão heterógenas – aí Pierre-Yves Gaudard diria que elas não são enodadas como nós, elas são enodadas de outro modo, a maioria delas – por que trazer as crianças nos relatos lógicos que portam universais sobre o amor, a ação, o conhecimento? E então, nós tivemos a ideia, graças a Ilaria, de partir da mudez e do silêncio, que é uma virtude psicanalítica.
Não é preciso que vocês esqueçam que o termo mytos vem de mutus: os segredos e os recalques, para fazer entender a repetição dos mesmos mistérios desde a origem dos tempos.
As grandes questões que o humano se indaga, incluindo a criança, são em número reduzido: quem decide um destino? Por que o amor sempre causa drama? Por que há o inumano no humano? Pode-se perdoar?
Então, no trabalho com essas crianças, o romance – o que se pode chamar o romance familiar – frequentemente é um romance que tem conotações de grande tristeza e de mágoa. Mas o romance é um tempo colocado por um relato outro que comporta, o mais frequentemente, episódios históricos autênticos e partes puramente simbólicas, o que se chama um mito. Se vocês leem um dos grandes mitos, o Minotauro por exemplo, vocês verão que as provas trazidas, tanto para nós como para a criança, estão sempre no limite, à beira do precipício, à beira do buraco. E daí? Eu caio, ou eu não caio?
Portanto, é uma questão que temos colocado a nós mesmos, que não é evidente. Precisa simplesmente convidar as crianças do traumatismo que recebemos à estar à beira do precipício, para aliviar o “excesso” de lembranças. Eu diria uma frase um pouco lapidar que vocês podem notar como tal: eu diria que o imaginário do mito, dos grandes mitos, confere a proposição de Lacan: R, S e I são os nomes primeiros, nomes do Pai.
O imaginário do mito tem a força por sua leitura de produzir essa triplicidade. Numa sessão com crianças, vocês fazem surgir as três categorias lacanianas a partir apenas do relato e da leitura em voz alta. Não vale à pena fazer o curso de teoria, basta vir para observá-lo. Ler em voz alta o mito: o território do logos confronta, aí, a criança, na maior parte do tempo, no melhor dos casos, àquilo que se poderia chamar o impossível da memória literal.
A longa fita contínua dos “gozos” frequente causa nela traumatismo, luto, exílio. É preciso que ela aceite, essa criança, como nós mesmos, nem seja senão por um instante, em sua memória – que nossa memória, tão sagrada, tão singular, tão fetichizada – seja apenas um rasgão no espaço-tempo da língua. É isso que se pretende.
É possível para um sujeito que viveu tantos dramas, ainda que por um instante, que ele se alivie de tudo isso? Que ele diga “sim, é um rasgão no espaço-tempo da língua”? A experiência – creio que Ilaria vai narrar a sua maneira – nos mostra que é possível localmente, por um verdadeiro amor. Um amor de transferência. Mas é preciso praticantes que sejam capazes, ao mesmo tempo, da humildade e da cólera. O que não está sempre junto, mas, nessa circunstância, esse é o caso. Ilaria, é com você.
Ilaria Pirone: boa noite a todos. Tenho pensado para essa noite sobre esse título que faz um pouco a introdução:
“Na falta de um lugar entre o exílio e a errância, o sujeito.
A clínica: uma das formas da hospitalidade”.
Portanto, clínica do exílio, é uma clínica que além das questões técnicas que ela coloca nos obriga a uma reflexão ética sobre nossa posição. É uma clínica que nos obriga a manter um olho aberto sobre a cidade, justamente para não nos enganarmos sobre nossa posição de praticante. Primeiramente, não se enganar com os termos. Quem nós recebemos? Nós não recebemos imigrantes, nem migrantes, nem refugiados. Como lembra o antropólogo Michel Agier em seu livro Définir les refugiers: “são categorias institucionais, políticas, sociais, administrativas que, além disso, respondem à lógica binária da esfera político e legislativa, que os separa entre estrangeiros e cidadãos; não se pode ser os dois.
Recebemos, portanto, famílias, eu diria, crianças em situação de exílio, e esse termo já é complicado de saída, uma vez que essa expressão, se ela é utilizada para qualificar uma situação, etimologicamente remete rapidamente à questão da expulsão. Então eu proponho talvez essa ideia, nesta noite, de que recebemos famílias, crianças, sem lugar. Porque depois do exílio, segue-se, para muitas dessas famílias, a errância. Quer dizer, um tempo onde elas permanecem sem lugar. É assim que eu escreveria o tempo da demanda de asilo. Quando ele chega a uma demanda – vocês sabem que é cada vez mais difícil – e quando em seguida, por sorte, ela tem uma resposta favorável. Então, há esse tempo intermediário de suspensão, longe de ser a epopeia grega. Então, colocar o quadro da nossa proposição, escolher os termos, convoca uma questão ética entendida como posição do praticante.
Então, nosso trabalho é, no fundo, permitir a emergência desse sujeito no exílio. E aí, não é mais o exílio da posição social, mas o exílio da posição subjetiva, lugar onde, efetivamente, estamos autorizados a utilizar esse termo.
Na Unidade do CMPP onde eu trabalho, temos escolhido colocar para trabalhar a questão do relato, o lugar do relato nessa clínica, que tem suas especificidades, por alguns lados. Ao longo do relato, trata-se de passar da tecedura ao enodamento, como diz tão bem Melman em seu texto sobre O trabalho de Zeus.
Mas, talvez para fazer essa operação de passar da tecedura ao enodamento, haja um tempo prévio necessário do “fazer narrativa”. Uma vez que, até para a questão da narrativa – se se tem a impressão de estarmos de acordo sobre a utilização desse termo –ele abre entretanto a um campo muito vasto.
Seria preciso fazer um curso sobre a narratologia, a narratologia pós-clássica.
Barthes, por exemplo, nos lembra: “a narrativa está presente em todos os tempos, em todos os lugares, em todas as sociedades. A narrativa está aí, como a vida”. Mas o que se diz quando se narra? Para mim, quando eu falo de fazer narrativa, é um compromisso de colocar à frente a narrativa, portanto o ato de contar, que é no fundo isso sobre o que se trabalha mais, mais que sobre o objeto.
Então, a narrativa nos interessa porque ela nos é necessária em um primeiro tempo para repassar por todo esse trabalho de tecedura, já que o traumatismo tem como efeito desatar todos os fios. A meu ver, nós não podemos fazer dessa questão do exílio uma questão identificatória. Nossa própria narrativa não nos dá legitimidade clínica. Nossa experiência de migrante não pode fazer saber do outro, para o outro, em lugar do outro.
No máximo, como nos lembra Ricoeur em uma conferência que tem por título Étranger soi-même (feita numa época em que o significante migrante era passado em segundo plano no espaço público e onde o significante refugiado ainda não era utilizado). Utilizava-se ainda simplesmente a palavra “estrangeiro”. Nesse texto Étranger soi-même, citando o Levítico (livro da Torá), ele nos lembra que a lembrança, no máximo, permite apenas a hospitalidade. Lembrança que, em certos casos, deve ser um dever como o lembra Primo Levi em sua poesia de introdução a Se isto é um homem. Lembro os primeiros versos:
“Vocês que vivem seguros em suas cálidas casas,
Vocês que, voltando à noite, encontram comida quente e rostos amigos
Pensem bem, se isto é um homem,
que trabalha no meio da lama,
que não conhece paz, que luta por um pedaço de pão,
que morre por um sim, por um não.
Pensem bem, se isto é uma mulher,
Sem cabelos e sem nome,
Sem mais força para lembrar,
Vazios os olhos, frio o ventre,
Como um sapo no inverno.
Pensem que isto aconteceu:
Eu lhes mando estas palavras.
Gravem-na em seus corações,
Estando em casa, andando na rua,
Ao deitar, ao levantar;
Repitam-nas a seus filhos.
Ou, senão, desmorone-se a sua casa,
A doença os torne inválidos,
Os seus filhos virem o rosto para não vê-los”.
Vejam, isso me parecia um apelo às lembranças, um lugar de legitimidade identificatória naquilo que pode se passar em outros momentos da história.
Depois dessa abertura um pouco grave, para ilustrar a imagem de “fio desatado” do texto, partirei do encontro com uma criança, uma criança que chamarei Raphael. Parti desse encontro clínico para tentar mostrar essa ideia de que o trauma desata os fios, deixa o sujeito num imaginário desnarrativizado, sem borda, intemporal, uma justaposição de imagens.
É uma clínica que pede, num primeiro tempo, um trabalho de retecedura de diferentes fios, não para reconstituir uma narrativa para o paciente, mas para não correr o risco de se seguir com um só fio, desatado do resto e permanecermos nós mesmos, numa forma de imagem fixa.
Quando se encontra essas famílias, é o relato do trauma que é posto adiante: relato que eles devem restituir à assistente social e a todos os serviços administrativos que eles encontram, para poder fazer reconhecer sua demanda. É também frequentemente o primeiro relato que nós recebemos.
Para não permanecer fisgado nesse primeiro relato, num dos fios do relato, parece-me que há um momento onde devemos nós mesmos retecer.
Em um seminário de 2006 sobre o fantasma, o Dr. Tyzsler nos lembrava que há pessoas que, por razões históricas, viveram coisas que nós não vivemos. É preciso tomar isso com tato, mas o que importa entretanto para o sujeito é a possibilidade, qualquer que seja seu momento traumático, de passar ao plano do fantasma. Sua chance é essa aí. Então, no fundo, por esse trabalho de retecedura, trata-se de tentar acompanhar o sujeito nessa passagem entre o trauma e alguma coisa que permitiria uma reconstituição do fantasma, ou em todo o caso, uma reemergência do fantasma.
Há um outro artigo muito bonito, de Martine Menez: De um traumatismo ao outro. O que se transmite do exílio, onde ela cita um momento da vida de Freud.
Esses dois artigos, ainda que bem diferentes, dão uma indicação para o trabalho: fazer um trabalho de tecedura de significantes com essa criança, fazer emergir a multiplicidade dos relatos, a história da família e a História. Criar um espaço para que os pais possam falar dele, além do acontecimento que marcou uma parada. O acontecimento que fez tomar a decisão do exílio.
Vejam alguns elementos da história:
Raphael, quando eu o encontro, tem oito anos. É uma família de origem armênia que fugiu da Rússia. Eles habitavam uma das regiões que Putin queria repovoar para poder controlar as fronteiras, e aí, nesse lugar bem afastado, eles ajudavam outras famílias de migrantes.
Isso é importante porque é assim que eles nos contam. Eles ajudavam as outras famílias de migrantes em seus périplos administrativos. A polícia fez-lhes a injunção de parar, eles foram em seguida ameaçados por uma parte dos ultranacionalistas russos e a polícia não veio protegê-los. Até o dia em que a ameaça se concretiza em agressão: o pai é queimado gravemente. Ele corre perigo de morte. É aí que eles decidem partir para a França.
Isso é o relato do trauma e da demanda de asilo.
Mas vocês verão que nessas poucas vinhetas que eu vou lhes apresentar das sessões com a criança, que se a gente só se prende a esse fragmento, a gente permanece em um quadro restrito.
Um elemento que era muito importante no trabalho com essa criança é também a história narrada pela avó materna, muito presente nessa família. Graças à tradução da secretária e sua grande cultura, nós podemos colocar em ligação tudo o que essa família nos conta com a história da Ásia Central e da Rússia. Não é forçosamente um trabalho de cultura que é preciso fazer, é um trabalho de encontro entre culturas.
Cada vez que o encontramos, somos obrigados a abrir nossos livros de história: ver de que é que eles nos falam, o que é que se passava aí antes. Há uma bela frase de Karen Akoka em uma obra Definir os refugiados que nos lembra que: “ser refugiado remete a uma pertinência coletiva e não a uma situação individual”.
Essa família, do lado da avó materna tinha uma vida abastada no Uzbequistão, antes da queda da União Soviética em 1992, quando todas as repúblicas procuravam sua independência, empurradas pelos nacionalismos. Eles perdem seu estatuto, o avô morre de um ataque cardíaco no mesmo dia em que perde seu trabalho enquanto diretor de uma grande empresa. A avó e seus dois filhos, ficam sozinhos – então o tio de Raphael e a futura mãe de Raphael – se refugiam na Armênia, já que eles têm nacionalidade armeniana. Aí, o tio de Raphael tem que fazer serviço militar. Guerra. Ele é declarado desaparecido. A mãe o encontra em estado de choque. Uma vez seu filho encontrado, eles não podem mais permanecer na Armênia, uma vez que ele é expulso do exército. Eles se refugiam na Rússia. Dificuldade aí de se fazer aceitar uma vez que são amernianos. Eles decidem pedir todavia a nacionalidade russa, que eles obtêm. É aí que a mãe e pai de Raphael se encontram. Mas é um período onde os caucasianos não são verdadeiramente bem-vindos e, portanto, eles são objeto de diferentes ameaças e decidem então ir viver nesse recanto afastado da Rússia para se refugiar. E aí, eles ajudam os refugiados armenianos a fazer seus périplos administrativos.
Por lembrete, é muito interessante ver a questão do genocídio armeniano entre 1915 e 1916: os armênios são um dos povos que obtém o estatuto de refugiado em primeiro lugar. É a Convenção de Genebra que muda um pouco o estatuto de refugiado.
O que é interessante nesse pequeno relato histórico é que os refugiados são os outros. São então exílios – além dessa historieta – são então exílios sucessivos que marcaram a história dessa família. Os exílios inscritos nos exílios de uma parte de um povo inteiro.
E um outro elemento importante é a questão das origens armênias de toda a família. Porque, nós mesmos, tínhamos perdido de vista um pouco que eles fossem armênios de origem, já que eles se apresentavam com seus papeis russos e sua nacionalidade russa. Então essa clínica pede um grande trabalho institucional porque tudo o que eu lhes digo aí é graças ao trabalho institucional: o Dr. Tyzsler recebia a família, as secretárias que tinham uma relação privilegiada com essa família, a Assistente Social, o que permitia recolher as diferentes peças de um quebra-cabeças.
E depois, a essas histórias de vida, é preciso acrescentar também o silêncio. O silêncio quanto à história do pai sobre os acontecimentos que os forçaram a partir. Esse fragmento do trauma, o pai queimado, permanece, contudo, um ponto de silêncio. É um elemento importante na história para a criança. Um outro elemento importante no quebra-cabeça é uma entrevista em que a mãe pôde falar dela enquanto mulher, e não enquanto refugiada. Nessa entrevista, enquanto mulher ela pôde dizer que Raphael tinha sido fruto de um milagre.
Vejam, esses poucos elementos de diferentes relatos mostram a necessidade de manter ligada a história do trauma com o relato do sujeito e o lugar de cada um, imaginário e simbólico, na configuração familiar. É um ponto de observação importante porque no trabalho com a criança se coloca sempre a questão de seu lugar no fantasma materno, como nos lembra, é claro, Maud Mannoni em A criança, sua doença e os outros: “a criança é o suporte daquilo com que os pais não podem se confrontar: o problema sexual”. Do mesmo modo diz Lacan: “o sintoma da criança encontra-se no lugar de responder àquilo que há de sintomático na estrutura familiar”.
Tomado no relato traumático, corremos o risco de cobrir o buraco e esquecer de encontrar os fios da sexualidade infantil. Por que essas crianças aí não teriam o direito ao fantasma materno, e não teriam o direito ao fato de que se trabalha também sobre seu lugar nesse fantasma? É isso que eu chamo de o dever de hospitalidade da clínica que era uma lei sagrada – vocês sabem – para os antigos, a hospitalidade, o dever de hospedar (isso não se diz em francês, em italiano pode-se dizer hospedare) hospedar, acolher o outro, o estrangeiro. Então os antigos deviam acolher o estrangeiro sem sequer lhe indagar seu nome: era preciso abrir sua porta e acolher.
O que é o meu encontro com Raphael, depois de todos esses pedaços de relatos. Saibam que eu o antecipei porque fui descobrindo esses fragmentos de relato ao longo do caminho e ao longo das sessões. Então, eu pude seguir vários fios para lhes narrar a historia desse encontro, principalmente a questão da escrita do nome de família, do nome do pai que é sempre uma questão. Mas escolhi fazer um relato ao longo das letras que marcaram uma virada no acompanhamento. E eu vou tentar indicar como no “jogar” – o playing de Winnicott – vê-se os fios[1] (fils –nos dois sentidos da palavra), os fios que começam a se enodar, e não forçosamente sob a forma de relato no imaginário, mas sob uma outra forma.
A primeira letra que se impõe desde a primeira sessão, é um A maiúsculo. E eu vou lhes dizer onde ela chegou! Mas é interessante ver e verificar mais uma vez o que Maud Mannoni dizia: a saber, que no primeiro encontro, vocês têm um tabuleiro e todas as peças e todo o resto para jogar, para que o sujeito possa se desenhar.
Então na primeira sessão de encontro com Raphael, ele começa por cálculos sem resultados ou com resultados que se repetem, os resultados que não correspondem: “dez mais doze, doze”. Depois ele faz pódios, ele desenha, nós todos estamos ali, e sobre cada pódio ele desenha personagens quer sorridentes, quer meio sorridentes, tristes, segundo sua posição. O desenho da casa, o desenho da árvore: uma macieira e depois o desenho da árvore imaginária; a árvore é uma casa. A árvore é uma casa, há uma corda para trepar e depois, há uma luz. Há uma flecha que indica a entrada. Isso é o desenho da árvore imaginária, (A), mas com relação ao primeiro. Depois, desenha o homem, vejam, um homem vampiro, é assim que ele o nomeia. Último desenho, e isso é o desenho onde ele tem o A. É um tornado! Há um A que lança um negócio e o tornado destrói a cidade. Dois soldados. O A é malvado, o A dá seu poder, destrói toda a cidade e depois foge. Ele sobrevive, vocês viram? Portanto isso, é a primeira letra.
Num excesso de angústia, Raphael se levanta e começa a fazer voltas na sala, com movimentos estereotipados das mãos. Vejam aí efetivamente as peças do tabuleiro: um homem, vampiro, um grande A destruidor e ameaçador e um abrigo com uma corda para chegar lá.
Então é claro, depois, perguntamo-nos se ele vai poder encontrar a corda, seguir o fio para poder emergir.
Nessas primeiras sessões, Raphael canta motivos bem repetitivos, no estilo dos jogos de vídeo, quando está sentado. Ou então ele vagueia pelo ambiente, mexendo de maneira estereotipada suas mãos. Há um movimento, o som, ou então os dois juntos. É preciso alguma coisa que tampe toda possibilidade de desabar. Os jogos de vídeo em casa parecem ter a mesma função: tampar. Da mesma forma que as histórias que Raphael conta, que parecem dever sustentá-lo em movimento para não cair, e permitir-lhe como dirá a criança na segunda sessão: “vou fazer um desenho para fazer os monstros sairem”. E novamente, um vampiro, porcos...
E a partir dessa sessão, um pequeno cenário se estabelece Ele pega as tesouras. “Amo as tesouras porque elas são como os humanos”. “A tesoura” – como ele diz – torna-se um personagem que corta todas as outras personagens que Raphael desenha. Muitas cabeças caem; finalmente a tesoura encontra uma segunda. “Creio que a tesoura não é malvada, é um outro mestre”. Então, a partir daí, isso se repete sempre assim: há um novo personagem que é malvado, e depois, o malvado encontra uma maneira de se acomodar, se integrar ao grupo; mas há um outro malvado que chega. Ele me pede para desenhar, um homem. Tesoura e esse fulano tornam-se os protagonistas de uma série de episódios que devem enfrentar os malvados, que eles devem poder parar com sua destruição. Eu não diria que eles devem aceitar regras, mas devem contudo parar a matança. Raphael anuncia no fim da sessão: “eu sou rei das tesouras; tudo termina bem como termina bem. Tudo é terminado bem, mas há ainda malvados”. O que lembra uma primeira entrevista com a família, à qual eu tinha assistido e que o Dr. Tyszler tinha conduzido: Raphael tinha narrado um conto que ele tinha inventado e no fim ele tinha dito: “mas, é preciso uma moral!”
Um cenário se instala – eu lhe dizia – que se repete de uma certa maneira idêntico ao fio das sessões. Raphael retoma a história do que ele chama “homem e tesoura”. Ele faz sempre um barulho monstruoso com a boca, ele desenha um malvado, um personagem, e para cada personagem ele lhe atribui detalhes. Eu não tenho o direito de olhar enquanto ele desenha. O homem, então o personagem que eu devo encarnar, deve ajudar os outros – dentre os quais Tesoura – para encontrar como fazer os novos personagens integrar o grupo. A história então termina sempre sem terminar: o malvado integra o grupo, mas um outro malvado chega. Pode-se ler essa história ao longo das repetições de diferentes maneiras. O Dr. Tyszler uma vez me tinha dito: “mas tudo vai bem, um buraco é possível. A história é sempre descompletada”, uma vez que há sempre alguém depois.
Entretanto na transferência, isso não saia muito do lugar... E essa história de descompletude não funcionava direito porque, no fundo, eu sentia essa forma de parada em direção a alguma coisa que se repetia, típica do trauma, mais como uma imagem que vem se repetir permanentemente, sempre a mesma.
Contudo, vez por outra, há movimento. Portanto eu sou “o homem”, de tempos em tempos ele chama esse homem de “o homem herói”. O homem leva muitos golpes, eu posso lhes dizer, mas ele é também chamado para defender os outros.
Ao longo de uma das sessões, Raphael anuncia: “isso vai terminar (talvez ele sentisse um pouco minha angústia) isso vai terminar com o fim do malvado e o homem como herói, mas ainda demora”. As crianças são sempre francas!
Permanecemos então intrincados numa história sem fim, com uma moral desligada de um ponto de vista ético. Passamos inúmeras sessões numa forma de repetição com essas séries.
Então vejam aí o ponto técnico: eu introduzo no jogo uns envelopes para enviar correspondências ou guardar seus personagens. É para mim uma maneira de bordejar um pouco esse imaginário sem borda limitando o espaço e depois, pouco a pouco, Raphael se apropria deles, chegando a renomear os envelopes e a criar um envelope “malvado”, um envelope de homens, e depois o envelope dos feridos, etc. Portanto ele começa a categorizar; tudo não é igual. Depois é a vez dos zumbis, há séries de zumbis. Ele coloca uma questão: “mas os zumbis na vida verdadeira, será que na vida verdadeira, a de vocês, vocês têm um pouquinho de medo dos zumbis? Eu penso que existem os zumbis, mamãe diz isso. Os zumbis comem os cérebros”.
Então por trás desse imaginário compacto, enfim uma pequena fissura deixando surgir uma questão.
Então eu proponho ao Dr. Tyszler de reunir a família e voltamos aos acontecimentos que deram causa à demanda de asilo. O Dr. Tyszler pede aos pais para nomear o que se passou: trabalho de nominação.
A mãe diz: “mas Raphael não sabe” e Raphael ao mesmo tempo, numa espécie de dor física, se dobra sobre si mesmo como se houvesse alguma coisa que lhe causasse dor, e diz: “por que ele falou disso?, era um segredo!”
Depois dessa entrevista, ele chega à sessão comigo e pode dizer as imagens de sua família em perigo que ele tem na cabeça: “em minha cabeça eu vejo pessoas que queimam”. É portanto com essa manobra que a segunda letra chega, depois do A da primeira sessão. Raphael olha – eu compartilho minha sala com uma fonoaudióloga – e ele olha um anúncio com letras, abecedários, olha o anúncio da fonoaudióloga com as letras do alfabeto e diz: “o R, R como Rússia”, diz Raphael e ele rabisca e quebra a caneta. Então vocês veem a angústia do traço a ponto que é preciso quebrar a caneta porque é violento demais para ele deixar um traço, um traço com seu nome. Além disso, com esse R que corresponde ao R de Rússia.
Depois no relato uma outra janela se abre – poder-se-ia falar aí, talvez, da janela do fantasma, se se pensa na construção gramatical que Lacan propõe a partir do texto de Freud bate-se numa criança e em seus seminários sobre As formações do inconsciente, e que acompanha os três tempos do complexo de Édipo.
Raphael o afirma em uma sessão: “tenho medo pelas crianças que foram batidas pela polícia na Rússia. Na televisão, eles disseram que havia um ataque de zumbis na Rússia”. Uma construção se sobrepõe ao relato do trauma, e ao mesmo tempo ele prossegue a história do homem e tesoura e introduz um personagem feminino pela primeira vez, nessas histórias: uma flor.
Ele me olha e me diz: “as palavras me fazem explodir a cabeça”. E aí, ele cria um envelope, é um envelope dos amigos de superpoder. Então vocês veem, é muito interessante com essas crianças porque vocês passam do trágico à poesia na mesma sessão.
Na sessão seguinte, Raphael narra um sonho. É a primeira vez: “eu sonhei, eu batia meus amigos com o robô malvado e com o lenço eu batia o robô malvado”. Ele muda então de posição, ele narra seus medos da noite, seus pesadelos. É muito difícil para ele adormecer. E ele cria um monstro de massa para modelar, o monstro – tragédia da história – será exilado numa caixa fechada com fita durex.
E depois, vejam, o amor acontece. Ele conta seu amor por uma menina da escola. A partir dessa segunda virada, o relato muda: alguns elementos de sua história aparecem. Ele me diz: “eu esqueci a cidade na Rússia”.
Eu escrevo meu nome e meu sobrenome e Raphael escreve o seu. O nome de família torna-se legível, mesmo se falta ainda algumas letras.
A família vem anunciar a aceitação de sua demanda de asilo. Raphael diz que ele não quer saber. O Dr. Tyzsler pede para fazer a leitura dos documentos oficiais diante da criança, para fazê-los traduzir também em russo. É insuportável para Raphael. Mas ele aceita. E depois, ele intervém rapidamente no fim: “eu quero ser como meu avô, criar alguma coisa”. Em seguida ele fala de seu sofrimento por seu amigo que ficou na Rússia, com quem ele cresceu; a viagem da Rússia para a França, os dois dias de ônibus, a viagem do exílio.
Nas sessões seguintes, Raphael alterna momentos em que ele fala dele, com momentos em que ele começa histórias que ele inventa na sessão: ele me colocava diante do meu limite de neurótica de não suportar que a malvadeza pudesse ganhar o negócio. Eu paro então meu relato. Em uma de minhas últimas sessões Raphael diz: “eu tenho uma mancha preta no cérebro. Quando você tem medo na cabeça dá isso”.
E a terceira letra chega. Quando Raphael quer desenhar o monstro que ele tem na cabeça, ele fica nervoso, e no desenho aparece um M, uma letra finalmente vem substituir a imagem.
Portanto, para concluir e permanecer nessa questão de letras onde cada uma tem um estatuto diferente, Raphael pode escrever seu nome de família, o nome está ali mas algumas letras ainda faltam. Há alguma coisa ali no trabalho de nominação e de identificação. O que é interessante nessas letras que faltam é que me parece que se pode fazer a ligação com o que vocês dizem frequentemente da questão do nome do Pai como abrigo. Martine Menez vai nesse sentido no artigo que citei anteriormente, ela escreve: “porque, o que encontra a criança do ex – exílio, expulsão – se não uma versão particularmente trágica da impotência do pai?” Suportado por um pai um pouquinho mais traumático que um outro, porque ele encontrou um buraco na linguagem, o buraco do simbólico, em sua própria existência. Porque ele está abertamente marcado pela falta, é abertamente vítima do real, deixando sua criança particularmente sem recurso, o que lembra a essa última sua posição inicial, hilflosigkeit, o desamparo do infans, entregue à onipotência de um outro de cuja sobrevivência ele depende.
Então eu acrescentarei que é preciso também interessar-se por um outro afeto, excetuando essas questões desses pais em conflitos, em aflições, o outro afeto que não é a angústia mas a vergonha. Não a vergonha que provocaria um desvelamento sob o olhar do outro mas, como escreve Primo Levi em La trève “a vergonha que o justo experimenta diante da falta cometida pelo outro, que criou nele o remorso pelo fato que, uma tal forma de desumanização produzida pelo outro, possa existir”. Talvez fosse preciso procurar uma vergonha trágica que pode ser religada a uma dimensão mitológica, essa dimensão do mito como o define Lacan em O mito individual do neurótico, entendido como alguma coisa que não pode ser transmitida na definição da verdade. Já que a definição da verdade não pode se apoiar senão sobre ela mesma, que é enquanto a palavra progride que ela a constitui.
Parece-me que é a partir daí, por exemplo, que com uma criança como Raphael, pode-se voltar ao mito. Quer dizer, no momento em que se pôde retecer os relatos e deixá-los de lado ao mesmo tempo, quer dizer, esquecê-los; algumas letras caem, pode-se reenodar. E então, pode-se trabalhar com o mito, já que o mito – justamente a diferença do conto – não tem necessidade do relato. O mito se veste com o relato, mas pode viver sem relato, o que faz com que vocês possam ler um fragmento de mito e ser tocado pelo trágico em uma frase. Vocês não têm necessidade de conhecer todo o mito do Minotauro para ser tocado pela tragédia da questão que se coloca no próprio momento em que o Minotauro é morto, no momento mesmo em que Ariadne é abandonada, ou em outros momentos. Quer dizer que o mito é, no fundo, como o lembra Melman em O métier de Zeus, “são as leis da linguagem”. Pode-se vesti-lo com o relato de diferentes maneiras e, aliás, é o que os gregos fizeram e é o que tem permitido, por exemplo, que a tradição dos mitos seja salva pelos cristãos.
É uma proposição. Pensar essa vergonha, essa forma da vergonha que não é a vergonha, que não é a vergonha das neuroses pós freudianas. Pensar também nesse trabalho sobre os mitos justamente como um verdadeiro trabalho analítico já que se pode trabalhar além do relato. Com a condição de que a criança esteja em algum lugar no relato.
Jean-Jacques Tyszler: Vejam aí. Obrigado! Creio que se pode agradecer a Ilaria. Eu tinha proposto que se pudesse dar, ao mesmo tempo, os aportes de clínica e alguns aportes de doutrina, como se diz. O que Ilaria fez, que não é simples, é lhes dar de passagem – infelizmente isso se faz muito raramente – os elementos de tecnicidade. Tudo isso não surge assim de maneira miraculosa! É o produto de elementos de tecnicidade. Tecnicidade na transferência, no trabalho da transferência. Pareceu-me muito importante para vocês, a propósito dessa questão dos sujeitos do exílio, para que vocês pudessem entender alguma coisa de encarnada. Quer dizer que vocês se dão conta do tipo de encontro que isso constitui.
Então Ilaria fez o esforço, dando-lhes os elementos de tecnicidade. Estávamos preocupados por essa família russa que pedia asilo. Pensávamos que fosse pouco provável obter o asilo para essa família. E isso demorou um tempo x, bastante longo, um ano, um ano e meio, eu não me lembro mais. Entretanto as autoridades terminaram por reconhecer para o pai, depois para a avó, depois para a criança, em suma!
E por que a criança recusou-se a escutar o acordo do Estado francês? Ora, porque foi indicado que o pedido de asilo concedido é sem retorno possível. A memória. Vocês veem a questão da memória de que eu falava. Quer dizer que a criança, no mesmo momento, sabe que ela vai fazer seu luto do que vocês diziam há pouco: de todo o imaginário russo, de seus amiguinhos russos.
Nós trabalhamos com clínicas onde é preciso avaliar, onde o abrigo natural da função paterna não é mais assegurado; isso não quer dizer que ela é recalcada, que ela é perversamente delegada, que ela está foracluída. É preciso encontrar uma palavra. Eu o digo “sem abrigo” porque os pais estão mortos, foram torturados, foram humilhados, foram esquecidos. Podemos nos guiar com Lacan que nos falava “dos nomes do pai”.
A criança encontra sua localização na ligação entre o objeto do fantasma e a poesia. Isso bastará muito bem como abrigo. São elas que fazem o seu caminho com coragem.
Um participante: Bom dia! Eu queria colocar-lhes uma questão sobre o mito. Vocês dizem que no mito não há necessidade de saber a história do Minotauro, o resto. Será que não se pode dizer que no mito se associa a um surgimento de uma letra do inconsciente, quer dizer, há alguma coisa, já que não há história, não há sentido. O Minotauro, bom, ele está ali. Não se sabe a história, não tem sentido, não se procura encontrar o sentido de alguma coisa. Então a história que não tem sentido, que não tem um início e não tem fim, mas tem-se o Minotauro. Eu ousaria dizer, será que não é uma formação do inconsciente que aparece?
Ilaria Pirone: Então um estatuto simbólico, um valor simbólico. Os mitos são constelações de símbolos que vocês podem reagrupar, religar de diferentes maneiras.
Um participante: Então, não seria mais do domínio da letra?
Ilaria Pirone: Pode ser. Essa é a teoria do Dr. Tyszler, a literalidade dos mitos: os mitos reditos à letra.
Jean-Jacques Tyszler: em duas palavras, seria preciso talvez retomar Lévi-Strauss e voltar um pouco sobre a questão estruturalista, mas sem ir até Lévi-Strauss parece-me que se pode retomar até mesmo apenas a questão dos mitemas. Quer dizer, essa possibilidade de reduzir o relato a uma unidade, a elementos que se pode utilizar, que se pode recompor de diferentes maneiras. Há estruturas elementares. Com o conto não se pode, como dizer, não se pode compreender o Pequeno Polegar se não se conhece toda a história do Pequeno Polegar. Não há um momento da história que pode bastar, que vocês possam extrair e que vocês possam utilizar assim. Para mim é a diferença... Os contos têm necessidade de um início, de um desenrolar e de um fim, a famosa estrutura aristotélica. Ora, os mitos, eles podem se despir disso. Ou se revestir com isso. Mas Ulisses – se se quer ser purista – Ulisses nem é mesmo um mito.
Pierre-Yves Gaudard: Sim, apenas uma pequena observação justamente a respeito do mito. Talvez que isso vá permitir esclarecer a questão entre o mito e o relato. Em Claude-Lévi Strauss, principalmente em Os mitológicos, ele insiste muito sobre o fato de que o mito não é constituído por uma versão do mito, mas que ele é constituído por todas as versões e, portanto, pode-se dizer que todos os relatos de fato são constitutivos do mito e que esses relatos podem mudar. E que, o que é a característica do mito, é que no fundo, é um meio de permitir pensar o impensável.
Jean-Jacques Tyszler: Vejam aí! É o Real. O que é engraçado é que a questão me foi colocada, quando eu estava no Brasil, não faz muito tempo. Eu contei aos colegas brasileiros a história do atelier mitos e os colegas brasileiros, como muitos colegas franceses, trabalham sobretudo com fábulas e contos, e lendas efetivamente. Então eles me disseram “mas efetivamente qual é a diferença?” Eu lhes disse, eu lhes asseguro que há uma diferença. E no lugar de lhes responder, eu lhes disse: “eu vou voltar a Paris e vou indagar às próprias crianças qual é a diferença”. As crianças, pequenas, me disseram as diferenças que eles faziam entre os contos, as lendas e os mitos. Quer dizer que uma criança – mas elas têm o quê? Seis, sete, oito anos – as crianças são inteiramente capazes de indicar que há no mito um ponto de verdade. Elas dizem “talvez não seja exato, mas é verdade”, o que não tem nada a ver para elas com algum conto, com qualquer conto que seja. É muito nítido. Portanto isso, é preciso que vocês façam um pouquinho a ideia da maneira com que a criança pequena separa imaginários narrativos e o que toca no fundo do inconsciente, em estruturas literais que fazem verdade. É surpreendente que ao crescer isso se esqueça. Isso não se sabe por quê. Mas para as crianças é absolutamente nítido. Eu fiz uma coletânea, se eu tiver que publicar um dia, eu narraria as respostas das crianças. E é isso que me pareceu o mais surpreendente, provavelmente porque nós temos dificuldade nós mesmos – aliás como diz Lacan – para fazer a diferença entre imaginário, simbólico e real. Quando Lacan nos diz ‘vocês não conseguem a partir do real, isso não lhes interessa’. A partir do momento em que se diz que há um obstáculo, uma dificuldade, um golpe... todo mundo se cala. Isso não interessa a ninguém. O que lhes interessa, é que o imaginário continue. E a gente o vive todos os dias.
Ilaria Pirone: Talvez um outro ponto, porque muitos utilizam essa questão do mito no trabalho analítico. É muito difícil mas, justamente, eu penso que o que é um pouco diferente nessa leitura é que nós não destacamos o peso identificatório. Em nenhum momento a Odisseia de Ulisses pode fazer identificação para essas crianças das odisseias. Essas crianças que vivem odisseias, elas próprias, nunca, em nenhum momento, se identificam a figura de Ulisses, ou de Telemac. Vejam, portanto, não é sobre o ponto de tecedura, mas o ponto de enodamento que se cumpre o trabalho. Tecnicamente, é isso que merece ser dito.
Participante: Bom dia! Obrigada. Eu me indago diante dessas crianças que não são abrigadas, como vocês dizem, pela metáfora paterna: será que a estrutura está em espera? O que é que se faz da estrutura? Porque aí vocês falavam de uma criança que contudo, se tornava um pouco psicótica. Visivelmente não. Ela não o é, mas quando se fala imediatamente de uma criança que não é abrigada pela função paterna, não sei se minha questão está clara, eu me indago se não há uma espera, alguma coisa que está assim em suspenso?
Ilaria Pirone: A metáfora da suspensão é, efetivamente, a metáfora que descreve melhor. São crianças em espera. Uma resposta em relação a essa criança – é por isso que escolhi narrar esse encontro, porque se as privamos da história da sexualidade infantil e então, se as privamos dessa história aí, efetivamente, qual é então a estrutura? Quer dizer, qual lugar elas tomaram no fantasma? Portanto é preciso voltar também a isso, qual lugar elas tomam? Para justamente permitir-lhes não estar mais em suspenso. Tomar posição e também, efetivamente, que a estrutura é um destino. Nós nos questionávamos, mas talvez para essa criança, posteriormente, talvez seja uma resposta de hoje, a questão da psicose não se colocava, colocava-se antes a questão de um pai batido por uma vergonha trágica e, portanto, por uma outra forma de forclusão. Quer dizer, não a forclusão do nome do pai, mas uma outra forma de silêncio, mais talvez que forclusão.
Jean-Jacques Tyszler: o que é muito interessante e que vai no fio da sua questão, e que Ilaria tenta narrar, quer dizer essa clínica particular, não estamos completamente nisso ainda, porque isso obriga a revisitar quase as categorias da própria clínica. Quer dizer neurose, psicose e perversão, de acordo, mas enfim, o quê então? Quer dizer com essas crianças, como muitos fios estão efetivamente em espera, a gente tece na borda de alguma coisa e tomamos um outro caminho. Fio por fio cremos que são traços psicóticos, mas não totalmente e então isso obriga! É isso que é genial, a meu ver, bem heurístico. É um trabalho em curso Não se pode dar os elementos de doutrinas gerais ainda, mas mesmo as categorias clássicas que vocês utilizam são postas à prova até um certo ponto.
Eu compartilho, há muito tempo, a ideia de que a propósito do que se chama forclusão do nome do Pai é preciso distinguir as formas. Há forclusões. Seria tempo aí de estabelecer as formas lógicas das forclusões. Não simplesmente aquelas clássicas que Lacan vai nomear, já há muito tempo, em seu cérebro seminário sobre as psicoses. Essas crianças apresentam curiosamente quadros que se poderia crer psicóticos: elas têm estereotipias, elas têm um discurso descosido. A gente vai esperar e vai se aperceber que no trabalho fio por fio, a maior parte não se torna nunca psicótica. Nesses quatro, cinco anos para trás, não tivemos nenhuma autista, nenhuma psicótica nos acompanhamentos das crianças do exílio. Quase nenhuma. Nem grandes traumatizadas. Então, o que é que se passou? Vocês veem, é muito interessante do ponto de vista heurístico das categorias clínicas, do ponto de vista do uso que nós temos dos nomes do Pai e do ponto de vista do uso plural que nós deveríamos uma vez estabelecer – ainda que isso não seja fácil – das forclusões.
Tradução: Letícia P. Fonsêca
Revisão: Carla Novaes
[1] Fils